05-05-2011 07:50
Wiilson Odirley Valla, Cel PM RR
1. INTRODUÇÃO
Por iniciativa de um Parlamentar foi apresentado um projeto de lei cujo objetivo era abrir a possibilidade de policiais-militares fazerem “bicos” no setor privado, fardados e com as armas que a eles são entregues pelo poder público. Caso fosse viabilizada essa decisão, estaria implantada, no Paraná, a privatização da polícia, com reflexos irreparáveis na já depauperada profissionalização da polícia.
A conseqüência, disso tudo, só pode ser traduzida por uma inversão devastadora, tornando a atividade policial-militar, para muitos, como se fosse um “BICO”, enquanto a atividade principal passaria a ser considerada justamente aquela concorrente ao dever profissional o que infelizmente já acontece em muitos casos e com a condescendência da Administração.
2. LIMITAÇÕES IMPOSTAS À CARREIRA POLICIAL-MILITAR
A gravidade da infausta iniciativa, na realidade, consiste na desestruturação dos ditames deontológicos de uma profissão típica de Estado, contrariando preceitos estabelecidos na legislação específica, a qual desvela a verdadeira pedra angular em que está alicerçada a atividade policial-militar, mas que infelizmente, não é levado com seriedade por muitos, agora, inclusive pelo Poder Legislativo paranaense. A contrario sensu, transcendendo a esfera doutrinária, pelo artigo 16, do Decreto Federal n.º 88.777, de 30 setembro de 1983 (R-200): “A carreira policial-militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Polícias Militares, denominada Atividade Policial-Militar”. Assim, Polícia Militar, convém lembrar, enquadra-se entre as organizações totais, nas quais os seus integrantes devem dedicar-se integralmente à profissão.
Neste particular, com muita propriedade, houve vários pronunciamentos contrários, todos unânimes em afirmar: que a iniciativa era absurda ou fora de propósito. Além disso, enfatize-se, num ato evidente de desrespeito a uma Instituição mais que secular, a exemplo da Polícia Militar, a qual confunde-se com a própria história paranaense. No mesmo diapasão o Governador eleito por um dos Estados da Federação veio a público afirmar que estava autorizando os integrantes da Polícia Militar a fazerem segurança particular fardados, gerando, com essa iniciativa, maior sensação de segurança à população, até como maneira de compensar o atraso de mais de três meses de vencimentos. Com o devido respeito, isto chega aos limiares da insensatez ou da própria irresponsabilidade.
Data venia, guardadas as proporções, seria o mesmo que permitir oficialmente a Juizes e Promotores, nas horas de folga, defenderem causas vinculadas aos seus deveres de ofício para complementar os salários, eventualmente baixos. Não obstante ao grave equívoco, tais iniciativas são aplaudidas por sugestiva fração da oficialidade e pela quase unanimidade da tropa. Entretanto, não estão interessados nas conseqüências, as quais já se revelam graves, ainda que toleradas pelas vistas grossas da Administração. Em verdade, tais atitudes devem ser encaradas, diante da lei, como crime de prevaricação, aliás, perfeitamente definido no artigo 319 do Código Penal Militar: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
Outra ambigüidade, no que se refere à adoção de uma postura mais profissional, consiste num certo paradoxo: se de um lado, a atividade policial-militar é normalmente concebida como essencial ao bem-estar da sociedade, que a ela deveriam estar vinculadas a competência e eficiência, de outro lado, tais iniciativas se contrapõem aos compromissos de fidelidade à profissão, aumentando a sensação de AMADORISMO de MUITOS.
À vista disso, viceja outra preocupação: não seriam vias iniciativas como essas, já em elucubrações pelos tecnoburocratas, para num futuro próximo, submeterem à privatização, não apenas de uma parcela do Poder de Polícia, mas, senão, da própria Polícia? Afinal de contas, a primeira cunha estaria aí sendo introduzida na cepa. Infelizmente, da tecnoburocracia dominante tudo se pode esperar, ainda mais, quando se encontra no Legislativo ressonância, de parcela de seus agentes políticos, para dar guarida a tais absurdos, aliás, na contramão do respeito aos serviços de relevância pública, como devem ser, indiscutivelmente, aqueles relativos à Segurança Pública e suas relações com os cidadãos, conforme deduz-se do artigo 42, combinado com os artigos 142 e 144 da Carta Magna.
a. Razões de Ordem Legal
Em resumo, as razões de ordem legal, além do preceito já citado, que desautorizam o policial-militar acumular outras atividades, quer seja na iniciativa pública, quer na iniciativa privada, são as seguintes:
1) pelo artigo 142, inciso II, o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente será transferido para a reserva, nos termos da lei. A única exceção à regra está no § 1º, do art. 17, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e diz respeito ao médico militar: “É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico, que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta”. Como se observa, somente àqueles médicos militares que se encontravam nessa situação, à data de promulgação da Constituição Federal, aliás, como bem definiu o art. 5º, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Estadual;
2) já, pelo inciso III, também do artigo 142, o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei. Ora, se o militar não pode nem acumular atividade no setor público de forma permanente ou temporária, como então, permitir na iniciativa privada?
3) Sendo o policial-militar agente público, na hipótese de autorizado por lei a exercer, atividade paralela no setor privado, fardado e com arma a ele entregue pela Corporação, não estaria o Estado assumindo, também, a responsabilidade civil pelos danos que seu agente causar a terceiros, conforme dispõe o § 6º, artigo 37, da Constituição de 1988? E, no caso de acidente ou morte do policial-militar?
4) O artigo 22, do Decreto Lei n.º 667, de 02 de julho de 1969, acolhido pela Constituição Federal de 1988, veda a participação de policial-militar na iniciativa privada, ao declarar: “Ao pessoal das Polícias Militares, em serviço ativo, é vedado fazer parte de firmas comerciais de empresas industriais de qualquer natureza ou nelas exercer função ou emprego remunerado”. Portanto, uma Lei estadual não pode se contrapor ao que dispõe a legislação federal específica, particularmente no que se refere às garantias das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares. Legislar sobre garantias das polícias militares, segundo o inciso XXI do artigo 22 da CF, é competência privativa da União;
5) pelo artigo 204 do Código Penal Militar é crime o oficial da ativa comerciar, ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada, cuja disposição de descriminalizá-lo, por legislação estadual, é outro equívoco, visto que compete privativamente à União legislar sobre matéria de direito, em particular sobre o direito penal (inciso I, art. 22 da CF);
6) o artigo 107 da Lei Estadual n.º 1.943, de 23 de junho de 1954 (Código da Polícia Militar) - com status de Lei Complementar, pois regula disposições contidas no parágrafo 1º, do artigo 42 da Constituição Federal -, também faz restrições a tais iniciativas: “Ao militar no exercício da profissão é vedado fazer parte ativa de firma comercial, de empresa industrial de qualquer natureza, nelas exercer função ou emprego remunerado”.
7) os incisos XII e XII do artigo 10 da Lei n° 8.429, de 02 de junho de 1992, trazem ainda a lume as normas de que permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente, ou permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no artigo 1° da referida Lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades, constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário;
8) a Orientação Jurisprudencial n° 167, proferida pela Seção de Dissídios Individuais do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho, definiu que não há empecilho à declaração da relação de emprego entre militar e empresa privada, ainda que disso resulte, no âmbito militar, sanção para o policial. Tal sutiliza, como bem entendeu o referido Tribunal, não pode alcançar a Corporação militar na apuração e punição das infrações praticadas que, a despeito da proibição legal, vem prestando serviços a particulares, em detrimento de suas obrigações para com a sociedade.
b. Razões de Ordem Ética
Dentre outras, as razões de ordem ética que desautorizam a legalização do famigerado “bico” e contrariam os princípios da moralidade e da eficiência preconizados no caput do artigo 37 da CF, são as seguintes:
1) normalmente, ao cumprir os serviços de escala, após uma jornada paralela, o policial apresenta-se para o trabalho já cansado e estressado. “O estresse na tropa é devastador”, afirma o Cel. PM RR José Vicente da Silva, do Instituto Fernand Braudel, um dos mais dedicados estudiosos da segurança pública no Brasil;
2) ao descobrir que pode ganhar mais fora do expediente, torna-se um profissional relapso e insatisfeito, pouco se empenhando no serviço e, quando o faz, é de má vontade ou eivado de arbitrariedade;
3) ao fazer “bico” como segurança privada, acumula dois períodos; em ambos, é submetido ao estresse de quem coloca a vida em risco. Segundo os levantamentos divulgados, a maior parte dos policiais morre fazendo esses serviços paralelos, situação que os deixa menos protegidos, incluindo os familiares;
4) além do mais, torna o policial-militar vulnerável ao assédio e ao recrutamento para as ações criminosas, em particular, do crime organizado. Basta observar o que está acontecendo com os policiais-militares, nestas condições, pelo País afora, mesmo sendo tal prática vedada por lei. Imagine-se com a liberação pretendida;
5) por outro lado, é questionável o fato de se oficializar que policiais-miilitares exerçam a tarefa de segurança privada, burlando-se a Lei n° 7.102/83, que torna privativa de empresas de segurança, devidamente registradas, a atividade que os policiais-militares (também civis) vem no dia-a-dia realizando. Com essa atitude elimina-se postos de trabalho, gerando desemprego na categoria, além de desobrigar os empregadores de buscar no mercado firmas de segurança especializadas para o serviço, como, também, firmas especializadas recrutarem policiais-militares sem ônus com treinamento, armamento e uniforme, frise-se, tudo pago pelos cofres públicos;
6) mesmo que o bico seja exercido por muitos, como tem sido a justificativa, não diminui a ilicitude de quem o pratica. O maior culpado é quem permite tal prática e contribui para a desprofissionalização de atividade, que tão importante que é, desfruta de tutela constitucional;
7) o “bico” afeta o princípio da isenção e a indispensável projeção da eqüidistância da polícia. Como poderá agir com imparcialidade e impessoalidade perante a lei, em ocorrência em que uma das partes esteja envolvida, a exemplo do contratante do policial-militar, sem gerar desconfiança em relação às atitudes adotadas?
A conseqüência, disso tudo, só poderá ser uma inversão devastadora, tornando a atividade policial-militar, para muitos, como se fora um “BICO”, enquanto a atividade principal passa a ser considerada justamente aquela concorrente ao dever profissional.
Afora isso, o que dizer daqueles policiais-militares que têm empresas, notadamente aquelas ligadas à segurança privada, usando, para tal, o subterfúgio da lei que permite ao policial-militar ser acionista ou cotista de empresas, sem participar da administração? Neste caso, há pelo menos duas dúvidas quando policiais decidem explorar um negócio que se alimenta da deterioração da segurança pública: uma ética e outra legal. A dúvida ética é óbvia: é lícito que profissionais pagos pelo Estado para zelar da segurança pública lucrem com a falta ou ineficiência dela? Isto é simplesmente imoral. A questão legal é controversa: o artigo 22 do Decreto-Lei n.º 667, de 02 de julho de 1967, combinado com o artigo 107 da Lei Estadual n.º 1.943, de 23 de junho de 1954, proíbem o policial-militar do serviço ativo, de exercer, mesmo no horário de folga, qualquer outro emprego ou função remunerada. Mas há uma brecha: ele pode ter ações ou cotas de uma empresa, desde que não exerça qualquer função administrativa. Na maioria das vezes são constituídas empresas em nome de terceiros, ou seja, das esposas ou de parentes próximos. Afora isso, tem se visto, também a formação de cooperativas dirigidas por oficiais a oferecer segurança privada com a utilização de subordinados. Por outro lado, sabe-se que estas empresas empregam habitualmente, além de homens, viaturas da polícia. As consultorias são agendadas no horário de expediente. Como diz José Boaventura, presidente da Confederação Nacional dos Vigilantes: “O uso de carros e homens da polícia pelas empresas de segurança é uma prática disseminada pelo país. É um tipo de privatização da polícia. Todos pagam pelo serviço do policial, mas só alguns se beneficiam”.1 Afinal, está tramitando na Câmara dos Deputados projeto de lei, apresentado pelo Deputado Federal por São Paulo Tuga Angerami, que pune com prisões policiais envolvidos com empresas de segurança. Pelo tempo já decorrido, é provável que tal iniciativa, a exemplo de tantas outras, vá permanecer, unicamente na boa intenção.
Não é possível servir a dois senhores. A primeira conseqüência desses equívocos paternalistas e/ou populistas só poderá agravar, ainda mais, a INDISCIPLINA e a INSUBORDINAÇÃO, resultantes, em última análise, da superficialidade da adesão e do tênue envolvimento com as exigências da vida castrense. A segunda, como resultado da primeira, além de criar um homem cada vez mais sem vínculos com a Instituição, vivendo unicamente para si próprio e suas prioridades, conduz a uma superficialidade que compromete a identidade da Corporação, diante do governo e da sociedade.
A bem da verdade, aquele profissional que não consegue sobreviver mercê de sua atividade policial-militar deverá procurar outra atribuição. As funções inerentes a esta ocupação são absorventes e pressupõem tempo integral e dedicação exclusiva – portanto plenas – excluindo todas aquelas próprias de outras profissões. Em outras palavras, é incompatível o exercício da atividade policial-militar com outra qualquer.
3. CONCLUSÃO
Concluindo, pela proposta do feito, violam-se os princípios da legalidade, da moralidade e da eficiência esculpidos no caput do artigo 37, da Constituição Federal. Infringe-se o princípio da legalidade na medida em que a Administração do Estado desconsidera, além da norma constitucional, toda a legislação infraconstitucional, a doutrina e a jurisprudência referentes à atividade militar estadual. Esta, como instrumento de preservação da ordem pública - dever do Estado - e, como atividade jurídica que lhe é própria e condição necessária de sua existência. Atenta-se contra o princípio da moralidade na medida em que a empresa particular conta com a participação de agentes públicos, pagos pelo contribuinte, autorizados a fazer serviços privados com arma e fardamentos fornecidos pela Corporação, com todas as implicações decorrentes. Contamina, também, o princípio da eficiência pela repercussão negativa nos resultados, comprometendo a imparcialidade, a neutralidade e a transparência dos atos de polícia, verdadeiros escudos para a sociedade proteger-se da corrupção, do suborno e do tráfico de influências. Se, na realidade o objetivo é tocar na auto-estima do policial-militar, em razão dos baixos salários, que o poder público deixe a hipocrisia de lado e atribua remuneração condizente a seus agentes, em particular aos agentes policiais, aliás, como se faz nos países em que a segurança pública é solução e não um problema como tem sido no País